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HORIZONTES: MATO GROSSO DO SUL

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Neste texto procuramos investigar as relações entre música popular urbana e a sociedade de Mato Grosso do Sul, tendo como enfoque o movimento musical surgido na década de 1960, em Campo Grande, capital sul mato-grossense, nomeado como moderna música popular urbana do Mato Grosso do Sul, por autores como o jornalista e pesquisador musical José Octávio Guizzo (1998, apud NEDER, 2014, p. 13) ou Música do Litoral Central, conforme classificada pelo etnomusicólogo Alvaro Neder (2014, 2017). Tal movimento musical é, segundo Neder, comumente aceito como representativo da identidade cultural do estado (2014, p. 13), entretanto, a forma como tal representatividade foi construída, e a sua constante manutenção, “difere entre os grupos sociais e ideológicos, explicitando alianças, contestações, divergências e conflitos” (ibid., p. 13).

Investigar a Música do Litoral Central, portanto, também significa se debruçar sobre os conflitos e contradições que perpassam o processo de colonização tardia e o desenvolvimento capitalista em Mato Grosso do Sul. Com o progressivo protagonismo da atividade pecuária chefiada pelos fazendeiros e latifundiários da região (NEDER, 2014, p. 15), atividade alçada a níveis industriais na contemporaneidade, se configurando como agroindústria, cada vez mais controlada e totalizada pelo capital (ANTUNES, 2018, p. 39) e suas relações com a globalização; a construção de consenso entre as classes trabalhadoras, médias e burguesas no estado, em especial como tal construção se deu na cidade de Campo Grande; a produção de hegemonia político-econômica e cultural da burguesia agrária, culminando na divisão do estado de Mato Grosso e na formação do estado de Mato Grosso do Sul em 1977, sob os auspícios da ditadura empresarial-militar, e o movimento dialético entre recalque e “desrecalque” do Outro na construção de identidade simbólico-cultural no estado, representado pela presença das influências indígenas, paraguaias, bolivianas e argentinas na produção cultural, em especial, musical, em Mato Grosso do Sul.

Como aponta Neder (2017, p. 2-3), a colonização e o desenvolvimento econômico do território que atualmente configura o estado de Mato Grosso do Sul se inicia efetivamente após o término Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), comumente conhecida como Guerra do Paraguai. Tal conflito, ao dizimar tanto os povos indígenas quanto os paraguaios que ali habitavam, abriu caminho para a atuação dos primeiros pecuaristas, que neste momento eram subordinados aos ditames do capital industrial, representado pelas casas de comércio sediadas na cidade de Corumbá, e do capital financeiro internacional, simbolizado pela Companhia Matte Larangueira, que possuía o monopólio da plantação e extração de erva mate na região. Neste momento, aponta o autor:

 

 

[...] o pecuarista pioneiro, descapitalizado e desarticulado, dependia inteiramente da casa comercial. Produzindo, em sua atividade, couros, charque e outros subprodutos bovinos, a sua comercialização demandava penosas viagens de barco a remo pelo rio Paraguai acima, até Corumbá, onde “a carne seca era vendida por um preço irrisório, pois aviltado pelas grandes casas comerciais, as únicas compradoras” (ALVES, 2005, p. 28). (NEDER, 2014, p. 41)

Este cenário só viria a se modificar em 1914, com a implantação da Ferrovia Noroeste do Brasil, na então Vila de Campo Grande, futura capital do estado. Neder afirma que a chegada dos trilhos da Noroeste Brasil,

 

[...] possibilitou o estreitamento de alianças políticas e comerciais dos criadores de gado com os grandes centros nacionais, especialmente São Paulo (no mesmo movimento, a ferrovia isolava Cuiabá, histórica rival de Campo Grande, nas disputas entre oligarquias, e condenava as casas de comércio de Corumbá à falência, já que dependiam logisticamente do navio, veículo mais custoso e lento (NEDER, 2017, p. 3-4)

Portanto, é com a chegada do transporte ferroviário em 1914, que se inicia, de fato, o movimento de dominação político-econômica e de produção de hegemonia da burguesia pecuarista na parte Sul do então estado de Mato Grosso. Tal acontecimento teria reverberações múltiplas: no que se refere ao desenvolvimento econômico, ele representou o advento de uma classe média, formada, fundamentalmente por profissionais liberais, e de uma burguesia urbana, atrelada ao setor de serviços, na cidade de Campo Grande, que, apesar de se relacionarem de maneira contraditória com a burguesia pecuarista, convergia com a mesma na defesa de um modelo desenvolvimentista excludente para o estado. A relação entre a burguesia agrária e o estado de São Paulo, também foi responsável pelo fortalecimento do movimento divisionista no interior de Mato Grosso, que desaguaria na divisão do estado, em 1977. Do ponto de vista simbólico-cultural, o modelo de desenvolvimento capitalista excludente, promovido tanto pela burguesia agrária quanto pela burguesia urbana, veio a representar a busca pela superação do “atraso” - sempre do ponto de vista do capital -, e pela “modernização”, atrelada a noções de “bom gosto” e “sofisticação”, associadas, por exemplo, às produções musicais realizadas no eixo Rio-São Paulo. Tal movimento, em Campo Grande, desembocou na criação, em 1924, da Rádio Clube, que, na primeira metade do século XX, se tornaria “o mais importante ponto de encontro social das famílias de classe média e alta” (NEDER, 2014, p. 65).

A busca pela identificação com a cultura dos eixos dominantes em nível nacional e internacional, no plano musical/cultural, representou, durante toda a primeira metade do século XX, a construção de uma forte dicotomia entre o universo musical urbano, - representado pelas músicas veiculadas nas rádios e nos bailes oferecidos pelas mesmas - e a música rural, com influências latino-americanas e indígenas, associadas ao “atraso” (sempre do ponto de vista do modo de produção vigente).  Conforme aponta Neder,

Tal dicotomia exprimia concepções até então inconciliáveis sobre o que constituía modernização. Por um lado, as elites buscavam “uma força alheia e dominadora que operaria por substituição do tradicional e do típico” [...]. Por outro, as classes subalternas de proveniência rural evidenciavam outro modo de conceber a modernização local, que não estava fechada às inovações tecnológicas (o rádio, o disco), nem aos confortos, urbanos, mas não abria mão de certos traços de sua cultura, conquanto concebida em termos dinâmicos (NEDER, 2014, p. 77)

Assim sendo, não havia, em Campo Grande, “um tipo de música ou outra forma cultural que buscasse, de alguma maneira, produzir um discurso urbano por meio da incorporação do rural” (ibid., p. 77). É justamente como uma forma de reação ao cenário aqui exposto que, na década de 1960, partindo de representantes das camadas médias urbanas, surge o movimento da Música do Litoral Central, fortemente influenciado pelos movimentos de contracultura internacionais e pela luta contra a ditadura empresarial-militar, instaurada em território nacional em 1964.

 

Seguindo os apontamentos de Neder, “a década de 1960 foi marcada por uma efervescência cultural que produziu, em Campo Grande, as primeiras universidades, [...] e uma maior atenção à cultura, em oposição à ênfase na atividade agropecuária.” (2017, p. 6). Nesse contexto, a Música do Litoral Central, “colocou-se como porta-voz da procura, por parte desses setores urbanos, de um caminho próprio para a urbanização e desenvolvimento da cidade, e a modernização das estruturas sociais, marcadas pelo conservadorismo e o patriarcalismo agrário”. (ibid., p. 5). O movimento,

[...] era idealizado por jovens identificados com ideais cosmopolitas e modernizantes, a contracultura e a ecologia (adaptada à realidade local do estado e sua natureza). A MLC [sigla utilizada pelo autor para se referir à Música do Litoral Central] foi a primeira produção cultural do sul do então Mato Grosso que vinha realizando, com propósitos críticos, uma reflexão sobre a urbanização de Campo Grande a partir de sua posição periférica no interior do Brasil e na América Platina. Para esse propósito, sintetizava a experiência urbana contemporânea dos grandes centros globais às influências pantaneiras, caipiras e latino-americanas, constituintes do interior do estado e, em menor escala, do cotidiano de Campo Grande. (NEDER, 2017. p. 6)

 

 

Tendo como representantes desse primeiro momento figuras como Paulo Simões, Geraldo Roca, Geraldo Espíndola e Lenilde Ramos, o movimento que buscava “refletir sobre rumos próprios a serem seguidos a partir de uma cidade que se pretendia desenvolvida e cosmopolita, embora dependente de uma realidade agrária” (NEDER, 2017, p. 6), acabou por influenciar na transformação dos papéis sociais e estruturas político-econômicas estabelecidas até então, atuando no campo cultural “em favor de uma modernização alternativa da realidade do estado” (ibid., p. 6), que se opunha “à modernização excludente que caracterizou tanto a atuação dos proprietários rurais, e também dos setores urbanos.” (ibid., p. 6).

Durante boa parte das décadas de 1960 e 1970, os (as) representantes da Música do Litoral Central permaneceram marginalizados “por praticarem uma música contracultural que não encontrava ressonância entre os setores mais conservadores, mesmo das classes médias urbanas” (NEDER, 2017, p. 6). O movimento,

[...] ao fazer emergir em suas composições e arranjos a imagem musical do outro, recalcado por longo tempo na música própria das elites, realizaram um verdadeiro retorno do reprimido, ou seja, os contingentes expropriados pelo modo de produção, cujos traços tentavam-se apagar (ibid., p. 6)

Entretanto, se em seus momentos iniciais, o movimento da Música do Litoral Central era, fundamentalmente, marcado por uma posição contestatória frente às estruturas político-econômicas, sociais e culturais dominantes, a partir da divisão do estado de Mato Grosso, com a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, a ascensão da burguesia pecuária aos aparelhos ideológicos estatais e a consolidação de sua hegemonia, a Música do Litoral Central passaria por um processo de cooptação por parte da classe dominante, interessada na produção de uma identidade cultural una, fundamental para a manutenção de seus interesses político-econômicos em um estado que nascia, não a partir de um movimento popular-libertador, mas sim sob os auspícios da ditadura do capital.

Assim sendo, a partir de 1977, os movimentos de manutenção da hegemonia agropecuária e a construção de uma identidade cultural sul mato-grossense encontram na Música do Litoral Central um instrumento chave para a consolidação de seu projeto dominante, atuando através do processo de construção daquilo que o crítico literário e sociólogo Raymond Williams classifica como “tradição seletiva” (2011, p. 54), ou seja,

[...] a forma pela qual, a partir de toda uma área possível do passado e do presente, certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são negligenciados e excluídos. De modo ainda mais importante, alguns desses significados e práticas são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que dão suporte, ou, ao menos, não contradizem os outros elementos dentro da cultura dominante eficaz. (WILLIAMS, 2011, p. 54)

Dessa maneira, aqueles elementos que antes eram vistos como contestatórios, o reposicionamento de elementos latino-americanos e indígenas dentro da produção musical do movimento, são mais uma vez recalcados, dando forma, a partir da década de 1980, a homogênea figura do “pantaneiro”. Tal figura foi filtrada pelas lentes da indústria cultural, sediada, fundamentalmente, no eixo Rio-São Paulo, representado pelo sucesso alcançado pela novela Pantanal, estrelada por Almir Sater, um dos grandes representantes da Música do Litoral Central e o único do movimento a alcançar alguma notoriedade nacional significativa.

Podemos verificar, também, que se a associação entre projeto dominante e a Música do Litoral Central resultou em alguns benefícios materiais e sucesso local para seus representantes, fruto do acesso às políticas culturais locais e apoio midiático, passado o boom entre as décadas de 1970 e 1980, os artistas do movimento, com a exceção de Almir Sater, não conseguiam reverberar nacionalmente, e também se viam distantes das músicas produzidas e consumidas pela classe trabalhadora residente em Campo Grande e no estado de Mato Grosso do Sul. Assim, o movimento acaba por ser associado aos interesses dos representantes políticos de Mato Grosso do Sul, retendo o prestígio de uma música vinculada à máquina estatal, mas não à popularidade relacionada ao amplo consumo e produção por parte de múltiplas camadas da sociedade. Nesse contexto, como aponta Neder:

Restam às iniciativas que empregam gêneros platinos e possuem real sustentação popular - como os “baileiros” e certas duplas sertanejas - o sucesso nas margens. Já a MLC se reparte entre aquela que também celebra a música platina, e, por diferentes razões, se tornou impopular, e aquela que é popular - ou seja, Almir Sater - mas que não favorece a ideia de patinidad. De ambas as maneiras, perpetua-se um círculo vicioso que tende a fixar as representações das culturas platinas de maneira contrária aos interesses das populações mais amplas de todos os países dessa região (NEDER, 2017, p. 22)

Concluímos apontando que, em tempos de crise estrutural do capital e de lutas políticas efervescentes em grande parte da América Latina, retomar o debate sobre a Música do Litoral Central significa retomar também o debate sobre a necessidade de integração latino-americana, sobre o papel muitas vezes contraditório que o Brasil cumpriu e cumpre no desenvolvimento de tal integração e sobre a possibilidade, - ou impossibilidade - da consolidação de tal integração sob os marcos de um modo de produção pautado pelos ditames do capital, (des)integrador e (des)social por definição.

Referências:

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. 1.ed. São Paulo: Boitempo. 2018.

NEDER, Alvaro. Enquanto este novo trem atravessa o Litoral Central: Música popular urbana,  latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. 1.ed. Rio de Janeiro: Mauad X. 2014.

_______. “Rei do gado zebu, hipócrita velha peste - e tome polca!” - música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. Música e Cultura. v.10, p. 1-25, 2017. Disponível em: <https://www.abet.mus.br/download/vol-10-2017-8-neder/> Acesso em: 06 jan. 2021.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. 1.ed. São Paulo: UNESP. 2011.

 

Pedro Fadel

Integrante da AH!BANDA - Núcleo 1

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